O embate entre governo e Banco Central

Por Carlos Gilbert Conte Filho

Com a manutenção da taxa básica de juros (Selic) em 13,75% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) no dia primeiro de fevereiro, o presidente Lula emplacou uma forte crítica a atuação da autoridade monetária. A partir de então, houve uma série de troca de farpas entre governo e o Banco Central do Brasil (BCB). Ambos os lados têm seus motivos para tanto: enquanto um está preocupado com a recuperação da economia e a melhora das condições sociais; o outro tem como foco o controle da inflação.

            Comecemos analisando o lado do governo. Lula se elegeu prometendo melhorar a vida das pessoas, principalmente os da faixa de renda mais baixa. Para tanto, precisa de recursos. Foi então implementada a PEC da transição que disponibilizou ao governo vultuosos recursos (R$ 145 bilhões) que serão destinados, majoritariamente, a políticas sociais. Mas isso não é o suficiente para melhorar de forma sustentada a vida dos que o elegeram presidente. É preciso mais do que dar o peixe. É preciso criar postos de trabalho para assim aumentar a renda real da população. Ocorre que para aumentar os postos de trabalho e a renda é necessário investimentos. Contudo, os investimentos foram reduzidos substancialmente ao longo dos últimos anos (gráfico 1), o que se deve, ao menos em parte, ao aumento do custo do capital.

Gráfico 1 – Taxa de investimento da economia brasileira e variação real do investimento no Brasil entre 2010 e 2020.
Fonte: IBGE (2023).

            Acontece que ao manter a taxa básica de juros em 13,75% ao ano, o BCB está sinalizando para os empresários: “se o seu projeto de investimento consegue remunerar acima dos 13,75% ao ano, esse projeto vale a pena, do contrário, compre títulos do Tesouro Nacional”. E como nossa economia está se recuperando do choque que foi a pandemia para a atividade econômica, ter o capital remunerado a atual taxa básica de juros, livre de riscos, torna-se atrativo. Logo, os empresários tem incentivos a canalizar os recursos para essa via e não para o setor real da economia. E é aí que o governo começa a torcer o nariz…

            O sistema de metas de inflação funciona como uma engrenagem: quando a inflação sobe, o BCB sobe a taxa básica de juros (e vice-versa). Ao subir a taxa básica de juros, os consumidores funcionam tal como os empresários: ou deixam os recursos que já possuem rendendo no sistema financeiro ao invés de comprar diversos bens, sobretudo aqueles que, na maioria dos casos, são demandados com o auxílio de empréstimos; ou deixam de contratar financiamentos. Com juros mais caros, mais caros ficam os empréstimos e, consequentemente, o consumo cai.

            O argumento do governo é o de que não faz sentido manter os juros altos se a inflação não é de demanda, mas sim de oferta. Se a inflação fosse de demanda – situação na qual os preços sobem porque a procura por bens e serviços é maior do que a economia consegue ofertar – então estaria correta a leitura do BCB. Mas não é o que ocorre. O desemprego está em um patamar bastante elevado (embora já tenha sido maior) e a renda da população foi corroída pela inflação ao longo dos últimos anos (gráfico 2), enquanto as negociações por reposição salarial dificilmente conseguem repor as perdas. Nesse sentido, é notório o quanto o poder de compra se reduziu ao longo dos últimos anos (basta olhar para o seu orçamento que você entenderá do que estamos falando).

Gráfico 2 – IPCA acumulado em 12 meses e taxa de desemprego (dados disponíveis até o momento).
Fonte: IBGE (2023).

A leitura do governo – e de grande parte dos economistas – é a de que a inflação no Brasil é de oferta em função dos choques que atingiram as economias brasileiras e mundial (pandemia, guerra no leste europeu e o consequente aumento dos juros nas diversas economias) e que, por consequência, elevaram o custo de produção. A título de ilustração, os alimentos ficaram mais caros não porque as pessoas compram mais, mas porque o custo da logística de distribuição ficou mais caro (custo de compra do caminhão – via taxa de juros elevada – e do diesel). Os automóveis estão mais caros não porque as pessoas estão comprando mais automóveis, mas por conta da escassez dos semicondutores.

Pelo lado do BCB, por sua vez, o instrumento utilizado desde 1999 para controlar os preços é o sistema de metas de inflação. A partir desse instrumento, se o acumulado da inflação está acima da meta estipulada (que em 2023 é de 3,25% podendo variar em 1,5% para mais ou para menos), o BCB aumenta ou, ao menos, mantêm as taxas de juros no patamar vigente (se a inflação cai a ponto de ficar dentro dos limites da meta, então o BCB reduz a taxa básica de juros). Foi o que aconteceu na última reunião do Copom encerrada no dia 01/02/2023: como no acumulado em 12 meses – mesmo que a inflação esteja em rota de queda (5,77%) – ainda está acima do teto da meta (4,75%), o BCB optou por manter a taxa básica de juros em 13,75% ao ano (gráfico 3):

Gráfico 3 – Taxa Selic entre junho de 2019 e fevereiro de 2023.
Fonte: BCB (2023).

Observa-se que, em 2022, a meta de inflação não foi cumprida. Enquanto o teto da meta era de 5% (3,5% podendo variar em 1,5%), o IPCA acumulado ao longo do ano foi de 5,79%. Diversos foram os fatores destacados pelo BCB para explicar o não cumprimento da meta (pelo segundo ano consecutivo), a saber: i) a inércia da inflação do ano anterior (o IPCA fechou 2021 em 10,06%); ii) a elevação dos preços das commodities, em especial do petróleo (que bateu os US$ 120 dólares o barril); iii) desequilíbrios entre demanda e oferta de insumos e gargalos nas cadeias produtivas globais; iv) choques de preços de alimentação resultantes de questões climáticas e; v) a retomada na demanda de serviços e no emprego impulsionada pelo acentuado declínio da quantidade de casos de Covid-19 e o consequente aumento da mobilidade. Além desses, o estouro da meta poderia ter sido ainda maior se não houvesse a desoneração na tributação sobre combustíveis, energia e telecomunicações, se a bandeira de energia elétrica que passou para a bandeira verde e; a melhora do câmbio.

            Para 2023, conforme o Boletim Focus divulgado pelo BCB em 13 de fevereiro, é esperado que o IPCA fique em 5,36% ao fim desse ano, portanto, bem acima do teto de 4,75% estabelecido pelo Copom (já considerando o intervalo de tolerância). A se confirmar, configuraria o terceiro ano consecutivo em que a meta não será cumprida. E o mercado precifica esse desajuste: nesse sentido, a expectativa do mercado para a Selic ao fim de 2023 é de 12,50% ao ano. O mesmo ocorre em relação ao próximo ano: segundo o Boletim Focus, o IPCA e a Selic esperadas para 2024 é de 4% (o centro da meta é de 3% podendo variar em 1,5%) e de 10%, respectivamente. Sendo assim, apenas em 2024 a inflação estaria dentro (do teto) da meta estabelecida pela autoridade monetária, motivo pelo qual o BCB se mantem vigilante.

            Sendo assim, é pouco provável que os juros devam cair substancialmente num horizonte de curto prazo que incentive os investimentos no setor real da economia ainda em 2023. Juros elevados se traduzem em dificuldades para o crescimento da economia, para o emprego e para a renda. De que lado está a razão? Difícil dizer. Se o governo defende a bandeira que o elegeu e se empenha em fazer a economia crescer, gerar emprego e renda, o BCB faz o seu trabalho que é buscar o controle do processo inflacionário. Mas como não existe almoço grátis, para se alcançar um dos objetivos, tem-se que renunciar ao outro.